Fonte: Folha de São Paulo - As últimas três semanas legaram uma grave lição ao país: a de que a pesquisa científica está sujeita aos humores de grupos que, caso entendam que assim devem agir, invadem e depredam laboratórios sob os olhares complacentes do poder público.
Não é possível enxergar de outra maneira a cadeia de eventos que levou ao encerramento das atividades do Instituto Royal em São Roque, única instituição brasileira preparada para desenvolver uma atividade-chave para a sociedade, a pesquisa de segurança de medicamentos.
É o caso clássico em que a vítima se torna réu. Por outro lado, seu agressor, apoiado em acusações vazias, posa de herói. É como se acusassem você, leitor, de maus-tratos com seus animais domésticos, invadissem e depredassem sua casa e os levassem embora, sem nenhuma prova concreta ou amparo legal. Como você se sentiria a respeito?
Todos os responsáveis na esfera pública --do prefeito de São Roque (SP) ao ministro da Ciência e Tecnologia, passando pelo coordenador do Conselho Nacional de Experimentação Animal-- atestaram a lisura e a correção do Royal, bem como a importância do nosso trabalho. Todas as sociedades científicas relevantes manifestaram seu apoio.
Enquanto isso, assistimos a um desfile de políticos e futuros candidatos em busca de fama, sem se preocupar com a verdade. Também pudemos observar autoridades que têm a obrigação de proteger a sociedade assistirem placidamente à atuação criminosa de um grupo de indivíduos, sem esboçar reação.
Se pensarmos friamente, podemos encontrar as raízes desse mal em nossos próprios corações. Quem aceita passivamente que vândalos agridam um coronel da polícia, por exemplo, também não vê nada de errado em uma ação como a que foi perpetrada contra o Royal. O distanciamento acaba gerando aceitação. Novamente, cabe uma pergunta ao leitor: e se isso ocorresse na empresa em que você trabalha?
Nossa equipe era formada por 85 profissionais que investiram anos em estudo e pesquisa. São biólogos, biomédicos e médicos veterinários cuja capacidade é resultado de seus esforços pessoais.
Para todos nós, é muito duro ouvir pessoas sem um mínimo de conhecimento científico e capacidade técnica opinando sobre pesquisas e teses de mestrado que um leigo não conseguiria entender completamente e, com base nisso, sermos acusados de maus-tratos que nunca existiram.
Além disso, precisamos conviver com nossos dados pessoais sendo divulgados na internet, além de ameaças, públicas e anônimas, à nossa integridade física.
Ainda pior do que isso, porém, é saber que todos esses 85 profissionais estão agora na rua e que não haverá nenhum grupo de "ativistas" para defender suas famílias.
A dúvida que ronda a comunidade científica é sobre aonde isso vai parar. Recentemente, um reconhecido instituto brasileiro iniciou testes em macacos para uma vacina anti-HIV, que pode salvar milhões de vidas ao redor do mundo. Haverá uma invasão à entidade?
Em algum momento, um novo laboratório deverá ser criado ou certificado para dar conta da pesquisa de segurança de medicamentos no Brasil --e certamente utilizará animais. É possível fazer isso sem riscos?
São dúvidas incômodas que demonstram o completo absurdo da situação. A única certeza por enquanto é que hoje, no Brasil, é preciso ter coragem para ser cientista.
Aberto, o Royal era alvo de invasões e palco de interesses políticos. Fechado, é um dos muitos sinais aparentes de que algo, definitivamente, não vai bem neste país.
SILVIA ORTIZ, 51, doutora em ciência de animais de laboratório pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pelo Instituto Pasteur de Paris, é gerente-geral do Instituto Royal
JOÃO ANTONIO PÊGAS HENRIQUES, 67, doutor em ciências naturais pela Université Paris SUD e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, é diretor-científico do Instituto Royal