Fonte: Tribuna da Internet - Dênis de Moraes - (Blog Ousar Lutar! Ousar Vencer!)
Na fantasmagórica sexta-feira 13 de dezembro de 1968, o cartunista Henfil anteviu a desgraça que assolaria o país horas depois. Em charge publicada no Jornal dos Sports com o aval do editor-chefe, Maurício Azedo, um torcedor desabafa diante da atmosfera irrespirável: “Chega de intermediários! Delegado Padilha para chefe da Seleção!”
Deraldo Padilha, delegado de polícia na extinta Guanabara, era acusado de utilizar os métodos mais truculentos para extrair confissões de presos e perseguir moradores de favelas, homossexuais e prostitutas.
Com a decretação do Ato Institucional número 5, a ideologia da segurança nacional assumiu, por completo, as rédeas da vida nacional. Ao Estado reservava o monopólio da coerção e o controle supremo das atividades sociais, políticas e econômicas. Em dez anos de vigência do AI-5, foram proibidos cerca de 600 filmes, 500 livros, 450 peças, mil letras de músicas, milhares de matérias jornalísticas, dezenas de programas de rádio e televisão, capítulos e sinopses inteiras de telenovelas.
Com a suspensão das garantias constitucionais, milhares de políticos, estudantes, artistas, intelectuais e líderes sindicais foram presos. Fechado o Congresso, foi imposta a censura prévia em veículos de comunicação. Só para dar um exemplo da prepotência: de cada dez cartuns que Henfil desenhava para o Jornal do Brasil, sete ou oito caíam na malha fina dos censores da Polícia Federal. Após o AI-5, a ditadura militar cassou os mandatos de 110 deputados federais, 161 deputados estaduais, 163 vereadores e 28 prefeitos, além de aposentar compulsoriamente três grandes ministros do Supremo Tribunal Federal, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, professores universitários e cientistas.
JORNAIS
A ditadura aniquilaria o Correio da Manhã, que parou de circular em 1974, após prolongada crise financeira. Vinte e quatro horas após a decretação do AI-5, o jornal O Paiz foi empastelado por grupos paramilitares. O prédio em Copacabana onde morava um de seus editores, o jornalista Joel Silveira, foi cercado por soldados do Exército armados de metralhadoras. Um capitão deu voz de prisão a Joel, que, gripado e com 40 graus de febre, teve a fineza de oferecer um cafezinho ao oficial antes de partirem para o I Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, onde dividiria a cela com o jornalista Carlos Heitor Cony, do Correio da Manhã.
O último número da Revista Civilização Brasileira, baluarte na resistência cultural ao arbítrio, circulou em 22 de dezembro de 1968. Editoras acumularam graves prejuízos com a apreensão de tiragens inteiras de livros considerados “subversivos”. Artistas e intelectuais exilaram-se ou tiveram que redobrar a cautela diante das ondas de prisões, processos e perseguições.
Na noite do AI-5, o poeta Ferreira Gullar aguardava em seu modesto apartamento na avenida Henrique Dumont, em Ipanema, a chegada do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha, como ele membro do Comitê Cultural do clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). Gullar não teve tempo de escapar. Soou a campainha. Ele dirigiu-se à porta, tenso.
— O senhor é Ferreira Gullar? — perguntou um dos três homens.
— Sim.
— Pois está preso — disse o capitão do Exército Ailton Guimarães Jorge, depois banqueiro do jogo-do-bicho no Rio e prócer da Liga Independente das Escolas de Samba.
Apavorada, a mulher de Gullar, Thereza Aragão, arriscou perguntar:
— Cadê a ordem de prisão?
— Está ali — disse um dos dois sargentos do Exército que acompanhavam Guimarães, apontando para a TV onde o ministro da Justiça, Gama e Silva, prosseguia na leitura do decreto que oficializava o AI-5.
SEM LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A ofensiva fascistizante desmantelou as formas críticas de expressão, submetendo-as à vigilância policial. Não se tratava mais de conter a produção intelectual em determinados limites, e sim de abortá-la, destruí-la como encarnação do mal. Como bem assinalou José Paulo Netto, saía de cena, à força, tudo o que de mais vivo, criativo e polêmico se alcançara na cultura brasileira na década de 1960 (inclusive na fase pós-1964).
Inaugurava-se o chamado vazio cultural, durante o qual a ditadura procurou ocupar os espaços dinamitados pela repressão patrocinando atividades acríticas e eventos alienantes. O regime avocou para si a tarefa de “preservar a memória nacional”, através de inofensivas obras de recuperação de parte do patrimônio histórico. Não somente liquidou com a hegemonia cultural de esquerda no período anterior, como azeitou a máquina de propaganda oficial para celebrar o “Brasil grande”, fazendo apologia do “milagre econômico” e do consumismo. Era tão sólido o “milagre” que não chegou a durar quatro anos, fulminado pela retração econômica global após a crise do petróleo.
Talvez a maior ironia da era de terror do AI-5 tenha acontecido em janeiro de 1973, quando o general-presidente Emílio Garrastazu Médici se valeu da legislação de exceção para demitir do serviço público o delegado Deraldo Padilha. O Exército nunca o perdoara por um atrito com o general Mozart Moacir, justamente em 1968.
(artigo enviado por Mário Assis)