Via Le Monde Diplomatique Brasil -
Segundo o Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU de março de 2014, durante o século XXI os impactos das mudanças climáticas deverão diminuir o crescimento econômico, tornar mais difícil a redução da pobreza, agravar a insegurança alimentar e criar novas “armadilhas” de pobreza, principalmente em áreas urbanas e regiões castigadas pela fome. Tais impactos agravarão a pobreza na maioria dos países em desenvolvimento e criarão novos bolsões de pobreza nos países com crescente desigualdade. As famílias pobres serão afetadas com o aumento no preço dos alimentos, principalmente nas regiões de alta insegurança alimentar e grande desigualdade, como é o caso principalmente da África.
Diferentemente dos países industrializados, em que a queima de combustíveis fósseis é a maior causa das emissões de CO2 – principal gás de efeito estufa (GEE) que influi diretamente na mudança de clima –, no Brasil as emissões são provenientes da mudança do uso da terra, sendo a principal a conversão de florestas para uso da agropecuária.
De modo geral, a perda de florestas contribui mundialmente com cerca de 17% das emissões de GEE. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, no Brasil a agricultura anual – voltada para o plantio de grãos – representa somente 4,9% da área desmatada (34,9 mil km2). Já a pecuária extensiva, cuja expansão é contínua e crescente desde a década de 1970, é a principal responsável pelos desmatamentos na Amazônia, com 62,2% dos quase 720 mil km2 desmatados até hoje na Amazônia.
Tendo em vista a contribuição da geração hidrelétrica, o Brasil tem uma matriz energética relativamente “limpa”, com baixos níveis de emissões de GEE por unidade de energia produzida ou consumida. O problema aqui normalmente diz respeito à ausência de consulta ou repartição de benefícios com comunidades locais no desenvolvimento dos projetos. Madeira, Xingu e Tapajós, por exemplo, são rios cujas comunidades ribeirinhas e indígenas são largamente prejudicadas.
Além disso, a ênfase nas megausinas oculta que a repotencialização das hidrelétricas existentes e o combate às perdas na distribuição reduziriam a necessidade de instalar tantas novas grandes obras, com alto impacto ambiental e social, e eliminariam a utilização das termelétricas, altamente poluentes.
No final de março de 2014, o IPCC lançou o Relatório do Grupo II, detalhando impactos, adaptação e vulnerabilidade associados a mudanças climáticas. O relatório discute os riscos de insegurança alimentar em razão de secas, inundações e ondas mais fortes de calor num mundo mais quente, o que afetaria sobretudo os países mais pobres. Prevê-se queda no rendimento das colheitas agrícolas a partir de 2030, enquanto a demanda por alimentos continuará a aumentar. Haverá graves problemas no abastecimento de água por causa do degelo das geleiras e da mudança no padrão de precipitação pluvial. Em decorrência, surgirão conflitos violentos e mesmo guerra civil pela disputa de recursos naturais.
O aumento na temperatura do planeta acarretará danos consideráveis à economia mundial. As populações mais pobres serão as mais afetadas, pois a intensificação dos eventos climáticos extremos, dos processos de desertificação e de perdas de áreas agricultáveis levará à escassez de alimentos e de oferta de água potável, à disseminação de doenças e a prejuízos na infraestrutura econômica e social.
Na conferência do IPCC em Yokohama, no Japão, em março de 2014, foi ressaltada a necessidade de promover a adaptação baseada em ecossistemas, como já ocorre em países das Américas Central e do Sul, onde técnicas como criação de áreas protegidas, acordos para conservação, pagamento por serviços ambientais e manejos comunitários de áreas naturais estão sendo testadas.
Por outro lado, em sua reunião em Berlim, de 7 a 12 de abril de 2014, o Grupo III do IPCC, dedicado a propor medidas de mitigação das mudanças climáticas, alertou o mundo que, para evitar aumento de temperatura acima de 2 °C, será necessário reduzir imediatamente a dependência de combustíveis fósseis e iniciar uma “mudança maciça” para energias renováveis.
O que muda no Brasil?
O Relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, divulgado em setembro de 2013, prevê um aumento de 6 °C na temperatura até 2070, com queda na produção agrícola. A agricultura brasileira pode sofrer prejuízo anual de R$ 7 bilhões.
Tomando como base os hectares cultivados em 2009 e se mantidas as atuais condições de produção, as projeções para 2030 apontam grandes reduções de área. Para o feijão, a queda vai de 54,5% a 69,7%. Para a soja, a queda estimada é de 15% a 28%. Trigo, de 20% a 31,2%. Milho, de 7% a 22%. Arroz, de 9,1% a 9,9%. E algodão, de 4,6% a 4,9%. O café, por exemplo, precisa de 18 °C a 22 °C de média anual. Fora disso, a cultura não se desenvolve. Ainda nos próximos sete anos, o plantio de soja pode perder 20% de produtividade. E até 2050 a área plantada de arroz pode retroceder 7,5%; a de milho, 16%; e a geração de energia pode ser ameaçada pela redução de até 20% na vazão dos rios.
Analisando o relatório, a ex-ministra Marina Silva comentou que “isso ocorre porque a pauta do governo e de setores atrasados do agronegócio fixou-se em desmontar a legislação ambiental e anistiar quem desmatou, como se as florestas e rios atravancassem o país e a agricultura. Agora, voltam-se contra os índios e suas terras, para reduzi-las e abri-las à exploração mineral e agropecuária” (Folha de S.Paulo, 13 set. 2013).
A vazão deimportantes rios do país e o abastecimento de lençóis freáticos, responsáveis pelo fornecimento de água potável para a população, poderão ser comprometidos se a temperatura subir até 6 °C nas próximas décadas e o volume de chuvas diminuir, conforme cenário que considera que os níveis de emissões de GEE permanecerão altos.
Nesse ambiente, a agricultura e o setor de energia do Brasil poderão ser fortemente impactados, sob risco de queda brusca do PIB e constantes crises que envolvem o abastecimento energético e a segurança alimentar.
Ainda segundo o documento, a temperatura no Brasil pode aumentar de 3 °C a 6 °C até 2100, situação que ficaria ainda mais crítica com uma possível escassez de chuvas. Na Amazônia, por exemplo, em 2100 a temperatura pode subir cerca de 6 °C e a distribuição de chuvas na região pode cair 45%. Desmatamento e queimadas no bioma podem contribuir para alterar drasticamente o ciclo hidrológico da floresta, prolongando a estação de seca e alterando a distribuição de chuvas no país.
Estudos iniciais sobre os efeitos das mudanças climáticas no Brasil, desenvolvidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com base nos cenários do IPCC, indicam que as áreas consideradas mais vulneráveis são notadamente a Amazônia, com a chamada “savanização”, e o Nordeste.
O calor acentuado, até 5,5 °C a mais do que a temperatura registrada atualmente, desencadearia um processo de desertificação da Caatinga, bioma já considerado ameaçado de extinção. No mesmo cenário de emissões altas, o Pantanal sofreria redução de 45% na quantidade de chuvas e aumento de 4,5 °C na temperatura.
Mata Atlântica e Pampa também registram, segundo o panorama de altas emissões, aumento na temperatura até 2100, de forma um pouco mais amena se comparados com as demais regiões. No entanto, o que preocupa, segundo o relatório, é o crescimento das taxas de pluviosidade. Enquanto na porção sul/sudeste da Mata Atlântica a quantidade de chuva pode subir até 30% nas próximas décadas, alternando com estiagem que ameaça o abastecimento de água, no Pampa, que abrange os estados do Sul, cresce 40% – o que aumenta o risco de inundações e deslizamentos em áreas costeiras.
São projeções dentro de cenários extremos de emissões de gases de efeito estufa. Se em trinta anos não mudarmos a taxa atual, a temperatura média anual do país já deve aumentar 1 °C (Volume 1 do relatório Base Científica das Mudanças Climáticas).
Bacias importantes do leste da Amazônia e do Nordeste podem ter reduções significativas em suas vazões. A estimativa é de queda de 20%. Segundo o documento, o Rio Tocantins poderá ter redução de até 30% em seu escoamento. Essa diminuição afetaria, por exemplo, a geração e distribuição de energia elétrica pelo país. Além disso, forçaria o governo a utilizar as termelétricas, muito mais poluentes. Já no Sul, a Bacia do Paraná-Prata poderá ter aumento de vazão entre 10% e 40% nas próximas décadas.
Quanto aos oceanos, o documento diz que a acidificação será acentuada se as emissões permanecerem altas e que o potencial de pesca em toda a costa brasileira poderá diminuir 6% nos próximos quarenta anos. As mudanças climáticas reduzirão a produtividade de quase todas as culturas agrícolas existentes atualmente. A previsão de perdas econômicas causadas por geadas e secas na agricultura gira em torno de R$ 7 bilhões anuais até 2020.
O ano de 2020 marca o prazo final para o cumprimento das metas brasileiras de redução de emissões, anunciadas em 2009 durante a conferência climática de Copenhague. Lembremos que, na época, o Brasil se comprometeu a diminuir entre 36,1% e 38,9% do total de emissões nacionais em comparação aos índices de 2005. Para reduzir as emissões após 2020, será fundamental introduzir um modelo de desenvolvimento econômico com menor consumo de energia e maior proporção de energia renovável.
Na área urbana, a população pobre é a que mais sofre com os eventos extremos, principalmente deslizamentos de encostas provocados pelas fortes chuvas. Será necessária a elaboração de planos de proteção e prevenção em todo o país, sobretudo na zona costeira, onde vive a maioria da população.
Mas o que predomina no governo federal é a visão tradicional de associar desenvolvimento a aumento de consumo material. Um bom exemplo é a redução do IPI para a produção de automóveis: o aumento do consumo piorou a qualidade de vida nas grandes cidades, castigando principalmente o trabalhador que passa horas no trânsito para ir e voltar do trabalho.
Os incentivos fiscais vão para automóveis, agrotóxicos, fertilizantes, queima de carvão e de combustíveis fósseis. Nos últimos dez anos, nenhum estímulo foi concedido para biotecnologia, mobilidade urbana, transporte coletivo, reciclagem de resíduos, manejo e recuperação florestal ou fontes energéticas renováveis (Lima A., ECO 21, mar. 2014, p.44). Ou seja, a política tributária do Brasil se choca com os princípios do desenvolvimento sustentável baseado na justiça social e na responsabilidade socioambiental.
Os investimentos em infraestrutura provocam impactos ambientais e sociais de grande intensidade. Contra tais efeitos, vem aumentando o número de protestos por parte de organizações socioambientais que defendem os grupos atingidos e denunciam a degradação ambiental. Não há dúvida de que essa luta contribui para elevar a consciência ambiental no país.
Com a prevalência da visão desenvolvimentista hoje no poder, os conflitos sociais e ambientais deverão aumentar nos próximos anos se as decisões econômicas dos setores público e privado não levarem em conta as advertências e recomendações da agenda socioambiental.
*Texto de Liszt Vieira é doutor em Sociologia e ex-presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro