Imagine o que é exercer a profissão de jornalista, principalmente o jornalismo investigativo, num país como o nosso, onde boa parte da classe “a” viciada em “licitações”, acredita que o patrimônio público deve ser parte integrante dos seus rendimentos pessoais que mantém viva, zelosa e cheirosa a sua mansão e a própria vida nababesca que leva.
E não venham me dizer que já estou fazendo falso juízo antecipadamente – que sou um negativista e torço para que tudo dê errado. O fato é que, a nossa profissão, exige atenção, vigilância, muito cuidado e informação. Motivo pelo qual, somos obrigado a furar madrugadas pesquisando e visitando, principalmente as publicações oficiais.
Aliás, visitar o Diário Oficial do Município, deveria ser um hábito que todos que fazem parte da classe culta, da classe pensante desse país deveriam fazê-lo com regularidade, bem como, assistir semanalmente as sessões do Legislativo Municipal, onde tudo é chancelado e até as maiores “mutretas” são carimbadas e oficializadas.
Voltando ao que realmente interessa nessa matéria, o Diário Oficial do município publicou na semana passada, o edital 117/2017, cujo objeto é: PREGÃO PRESENCIAL do tipo “Maior Percentual de desconto” Objetivando a Contratação de pessoa Jurídica para execução de procedimentos médicos, em diversas especialidades, no Complexo Hospitalar Municipal.
Confesso que quando me deparei com esse edital, minha reação foi: “Opa! Dessa vez vai mesmo entrar em operação essa Unidade de Saúde.”
Mas, ao ler com toda atenção todos os itens, me deparei com uma série de exigências que num olhar mais apurado, nota-se que existe algo mais ali, tendo em vista que as mesmas vão na contra mão do que determina a lei das licitações e contratos para concessões e permissões, regulados pelas Leis nº 8.987, de 13/2/95, e Lei 10.520/02.
“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.”
§ 1º É vedado aos agentes públicos: “I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5º a 12 deste artigo e no art. 3º da Lei nº 8.248, de 23 de outubro de 1991;”
QUAL É A SUSPEITA (...)...
O que CHAMA ATENÇÃO é a grande quantidade de requisitos técnicos, MUITOS deles irregulares e não condizentes com a lei 8.666/93 ou com a Lei 10.520/02. Entre essas supostas irregularidades, destaco algumas que o município está exigindo:
O item 12.1, por exemplo, solicitando Atestado expedido por pessoa jurídica de direito público ou privado, no qual se indique que a empresa já prestou ou mantém, contrato de prestação de serviços relativos a procedimentos médicos em características, quantidades de prazos compatíveis com o objeto licitado.
Com respeito a essa questão, o TCU já tem posicionamento firmado (Acórdão 1.214/2013 – Plenário)dizendo que não se pode solicitar que o atestado seja da área de saúde exclusivamente.
“111. Nesse ponto, parece residir a principal discussão a ser enfrentada – que espécie de aptidão deve ser requerida para a execução de contratos de serviços de natureza continuada, em que esteja caracterizada cessão de mão de obra. (…)
114. O que importa é perceber que a habilidade das contratadas na gestão da mão de obra, nesses casos, é realmente muito mais relevante para a Administração do que a aptidão técnica para a execução dos serviços, inclusive porque estes apresentam normalmente pouca complexidade. Ou seja, nesses contratos, dada a natureza dos serviços, interessa à Administração certificar-se de que a contratada é capaz de recrutar e manter pessoal capacitado e honrar os compromissos trabalhistas, previdenciários e fiscais. É situação muito diversa de um contrato que envolva complexidade técnica, como uma obra, ou de um contrato de fornecimento de bens, em que a capacidade pode ser medida tomando-se como referência a dimensão do objeto – que serve muito bem o parâmetro de 50% usualmente adotado.”
item 12.3: Comprovação de Convênio da proponente para com a instituição de saúde referencia do Município e que possua Unidade de terapia Intensiva sendo. Limite de distância à 100km do município, requer a comprovação de um médico que tenha o RQE em medicina intensiva.
13.3 Se houver no decorrer do contrato da empresa vencedora a necessidade de um aumento de números de vagas de especialistas, a secretaria de Saúde terá a prerrogativa de incrementar esses especialistas no mesmo certame licitatório. (sic)
15.1 Para realização dos serviços de ultrassom, endoscopia e videolabaroscopia, os médicos contratados deverão dispor dos seguintes equipamentos:
É dada uma lista de equipamentos que os profissionais devem possuir. No entanto o serviço é a terceirização de médicos para realização de procedimentos, não há como exigir-se previamente que os contratados possuam estes equipamentos, uma vez que os serviços não serão prestados na clínica do contratado e sim no próprio município.
16 - Visita Técnica
É solicitada a visita técnica como obrigatória, algo que não vai apenas contra todos os normativos vigentes, conforme Acordão n°906/2012 – Plenário, no qual o Tribunal expediu as seguintes determinações ao ente licitante:
“Abstenha-se de inserir em seus instrumentos convocatórios cláusulas impondo a obrigatoriedade de comparecimento ao local das obras quando, por sua limitação de tempo e em face da complexidade e extensão do objeto licitado, pouco acrescente acerca do conhecimento dos concorrentes sobre a obra/serviço, de maneira a preservar o que preconiza o art. 3ª caput, e § 1º, inciso I, da Lei 8.666/93.”
Veja que o Acórdão n° 785/2012 – Plenário, no qual o Relator acompanhou a unidade técnica e considerou, que:
“Em tese, não há óbices para que tal visita seja feita por profissional terceirizado pela empresa, sendo razoável, somente, exigir que o mesmo possua conhecimento técnico suficiente para tal incumbência”.
O TCU considerou impertinente exigir que o profissional que realiza a visita seja o mesmo que será responsável pela execução dos serviços licitados:
“Essa exigência mostra-se excessiva, porquanto o fundamento para a visita técnica é assegurar que o licitante tome conhecimento de todas as informações e condições locais para o cumprimento das obrigações do objeto da licitação. (…) seria perfeitamente possível que a visita técnica fosse realizada por um técnico ou outro profissional contratado pela futura licitante para esse fim específico, o qual posteriormente lhe passaria as informações necessárias para que tomasse conhecimento das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação, não havendo razão plausível para se exigir que o engenheiro que participasse da visita técnica fosse o futuro responsável pela execução do contrato”.
E não para por aí. O objeto da licitação, ainda que oneroso, não possui qualquer complexidade técnica. É mero alocação de mão de obra qualificada.
A impressão que se tem, neste caso, é que alguém quer saber com antecedência quais são as possíveis empresas que estão tentando retirar o edital, uma vez que os responsáveis pelo “carimbo” serão o Secretário (Agente Político) ou o diretor de saúde (Cargo em Comissão).
A restrição chega a tal ponto que não é solicitado apenas UM profissional, é necessário que CADA UM dos 30 profissionais da planilha faça a visita.
É bem possível que os profissionais da empresa que atualmente administra a saúde no município, nem sequer façam a visita, que eles meramente assinem a planilha e a Secretaria de Saúde faça o carimbo em todos os locais previstos para isso.
A exigência em si é altamente contrária à eficiência e não há, no processo, qualquer justificativa técnica que a embase.
No item 8.11, também em discordância com a legislação vigente, o edital prevê atestado de visita como DOCUMENTAÇÃO PARA FINS DE HABILITAÇÃO. Há muito há o entendimento de que tal previsão é legal, tanto o é que a própria Lei de Licitações não o previu: O texto da lei é claro quando diz no seu Art. 30, que a documentação relativa à qualificação Técnica limitar-se-á a:
Art. 30. A documentação relativa à qualificação Técnica limitar-se-á a:
I - registro ou inscrição na entidade profissional competente;
II - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;
III - comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu os documentos, e, quando exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação;
IV - prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso.
Outro item que causa estranheza no meu ponto de vista, foi a escolha do regime de contratação GLOBAL, tendo em vista que a apuração desta forma restringe a competitividade do certame de maneira excessiva, pois da forma posta serão apenas uma ou duas empresas a participarem desta licitação, o que por si só já inviabilizaria o certame licitatório.
Além disso, os objetos ora licitados não possuem correlação entre si. Restando a contratação desta forma corre-se o risco de ferir-se o princípio da ISONOMIA. (Neste diapasão, Hely Lopes Meirelles leciona:
"Igualdade entre os licitantes é o princípio primordial da licitação previsto na própria Constituição da República (art. 37, XXI), pois não pode haver procedimento seletivo com discriminação entre participantes, OU COM CLÁUSULAS DO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO QUE AFASTEM EVENTUAIS PROPONENTES. QUALIFICADOS ou os desnivelem no julgamento.
O Tribunal de Contas da União (TCU), assim também tem entendido:
“O § 1º do art. 23 da Lei nº 8.666/93 estabelece a possibilidade de a Administração fracionar o objeto em lotes ou parcelas desde que haja viabilidade técnica e econômica. Nos termos do § 2º, o fracionamento da contratação produz a necessidade de realização de diversas licitações. O fundamento do parcelamento é, em última instância, a ampliação da competitividade que só será concretizada pela abertura de diferentes licitações. Destarte justifica-se a exigência legal de que se realizem licitações distintas para cada lote do serviço total almejado.” (TCU. TC-021.933/2006-1. Acórdão nº 2393/2006. Plenário. Rel. Benjamin Zymler. Sessão: 06.12.2006. DOU 13.12.2006)
É solicitado ainda, no item 5.1 do anexo VI – Minuta de Contrato, a prestação de garantia de 5% do valor contratual. Ocorre que o edital não prevê tal garantia, sendo portanto ilegal.
Entre outras estranhezas, o edital possui dois itens referentes ao item “proposta de preços”. O item 10 (que é o texto padrão utilizado em outros editais) e o item 19 (que provavelmente veio junto com o copia e cola de outro edital).
A respeito do relatado acima (do copia e cola), os editais do município de São Miguel do Iguaçu seguem alguns padrões e este edital estranhamento não está neste padrão. Um dos motivos que levam a crer que o edital foi “marcado” é a forma como até mesmo as fontes do documento (usualmente “verdana” de tamanho “9”, estão modificadas em alguns pontos, em especial a partir do item “12 – Qualificação técnica”.
O Habitual é que o item “qualificação técnica” seja um subitem do item “Da habilitação”, desta forma ela seria o subitem 11.4 (seguindo a ordem cronológica de subitens dos editais normais do município), ou o subitem 11.9 na ordem apresentada, no entanto não seria o item 12, como disposto. Isso poderia indicar que o texto foi copiado de outro lugar. Outro ponto que corrobora para este entendimento é o Anexo VI, cujo início cita:
MINUTA DE CONTRATO No ...../2017
PROCESSO LICITATÓRIO No ..../2017
CONCORRÊNCIA PÚBLICA No ..../2017
Ocorre que não se trata de concorrência pública, algo que deve ter passado despercebido por quem fez o “copia e cola”. Outro ponto que fugiu aos olhos de quem elaborou este processo, é que neste mesmo anexo, em seu item 5.3, é indicada a agência do Banco do Brasil para que se faça o depósito da Garantia.
Ocorre que a agência mencionada está em Itaipulândia, o que causa estranheza, principalmente sabendo que o município mantem conta no Banco do Brasil, cuja agência está separada do Paço Municipal, apenas por uma Rua.
A restrição é tamanha que é possível dizer com quase 100% de certeza de que ela já tenha uma empresa vencedora, sendo possível, inclusive, que somente essa empresa (a qual no momento já presta serviços ao município) conseguirá atender todos os itens do EDITAL.
Estamos encaminhando essa matéria para o MP, bem como para o Presidente do Legislativo Municipal, ciente de que: SAÚDE PÚBLICA É DE INTERESSE DE TODOS E OS SEUS RECURSOS DEVEM SER USADOS COM A MAIOR TRANSPARÊNCIA POSSÍVEL.
João Maria Teixeira da Silva
Um dia depois da publicação dessa matéria, foi publicado no Jornal o Paraná, um edital corrigindo os erros apontados acima com relação a agência bancária. O site da prefeitura saiu do ar para manutenção..