Por ADERSON BUSSINGER – Tribuna da Imprensa
A recente e ofensiva declaração do Presidente Jair Bolsonaro de que tem conhecimento de como desapareceu o ex-estudante da Faculdade de Direito da UFF e militante político Fernando Santa Cruz e ainda que teria sido este assassinado pelos próprios companheiros de esquerda, - versão absolutamente desmentida por documentos oficiais e o próprio atestado de óbito do desaparecido fornecido pelo Estado brasileiro ! - além de revelar uma total ausência de humanidade, execrável moralmente, é também mais um alerta e confissão do quanto o Presidente da República não tem compromisso com o regime democrático e o Estado de Direito, o que fica patente em pronunciamentos com este, nos quais debochadamente é incapaz de sequer respeitar sentimentos familiares mais profundos, além de tratar com naturalidade o crime juridicamente imprescritível de desaparecimento forçado.
Em verdade, este recente comportamento faz parte de uma notória sequencia de declarações e atitudes, desde quando exercia o cargo de Deputado e cuspiu no busto em homenagem ao ex-deputado Rubens Paiva; zombou das atividades de busca dos guerrilheiros desaparecidos do Araguaia, assim como os trabalhos de exumação das ossadas humanas encontradas em ala clandestina do cemitério de Perus, em São Paulo; quando homenageou o Coronel Brilhante Ustra, notório torturador do Exército brasileiro; quando, já no exercício da presidência da República, comemorou em primeiro de abril passado o Golpe militar de 1964 que destituiu pela via das armas um Presidente constitucionalmente eleito; quando reduz e corta os recursos orçamentários dos órgãos do Estado encarregados de apurar a memória e verdade sobre a ditadura militar; quando nomeia para Comissão Nacional de Anistia seu ex-assessor de gabinete, que atuava nos Tribunais judiciais contra as concessões de anistia a perseguidos políticos, assim como indicando diversos oficiais do Exército para comporem o Colegiado da Comissão de Anistia encarregada de julgar os casos de perseguições políticas; quando permanentemente difama, calunia e busca desqualificar os defensores de direitos humanos no Brasil; quando segue negando a ocorrência de tortura durante o regime militar, o que o STF , de longa data, reconhece como fato incontroverso em centenas de julgados, assim como os documentos do Exército, Marinha e Aeronáutica estão repletos de provas documentais, depoimentos, incluindo o que consta dos arquivos do Superior Tribunal Militar; Enfim, Bolsonaro, através desta última declaração, apenas repete o mesmo do exatamente o mesmo: que além de adepto de regimes autoritários, possui incomum desprezo pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos causados pelo regime militar de 1964.
Mas para além da ofensa, cabe destacar a mensagem principal que ecoa em tais declarações, qual seja, a ideia-base de apagar da memória do povo brasileiro a ocorrência histórica no Brasil de uma ditadura militar, (sobretudo das novas gerações nascidas na década de 80 ), em relação aos quais se pretende incutir a ideia de que democracia é igual á corrupção, “ mal do populismo”, e, de outro lado, regimes militares, ditaduras, estes sim, -brada a extrema-direita-, constituem a pretensa solução para os problemas do país, ou seja, uma visão sob a roupagem discursiva de “ anti-sistema”, na qual o “ sistema” é representado pelo vigente regime democrático, e a salvação consiste na redenção de todos os males sociais através da assunção do poder pelos militares. E, via de consequência, porque chorar ou respeitar a morte, desaparecimento do jovem Fernando Santa Cruz e de tantos outros que lutaram pela democracia, se esta consiste exatamente no “mal” a ser combatido e extirpado ? Pois bem, fiquemos atentos, pois declarações como esta recente ofensa á família Santa Cruz, dita pelo detentor do mais elevado e importante cargo do Estado brasileiro, longe de ser apenas uma ofensa ao Presidente da OAB Federal e seus familiares, - o que por si só já seria abominável!- constitui uma política pensada e deliberada de propaganda e agitação, falsificação histórica e exaltação de métodos dos regimes autoritários, como o desaparecimento forçado, e que toma forma jurídica em projetos de lei, Medidas provisórias e Decretos que, em todas as áreas de competência estatal, vem propondo e, em alguns casos, já plenamente efetivando.
Com efeito, está em andamento um vasto projeto no MEC de redução das liberdades democráticas nas instituições universitárias; buscam cercear o debate politico e plural através de projetos como o “Escola sem partido” promovem a disseminação de Escolas militares cujo eixo de ensino, como é sabido, consiste na disciplina e pensamento monolítico, alardeado como “ sem viés de esquerda”; introduz, através de mecanismos de financiamento, a censura sobre as atividades artísticas de maneira geral, com foco atual, inclusive, no cinema nacional; controle e “filtro” políticos das pesquisas sobre informações sociais, cientificas, econômicas, como vem ocorrendo em relação ao IMPE, IBGE, com o afastamento de pesquisadores, cientistas e uma diretriz de limitar a divulgação ao público dos resultados das pesquisas, levantamentos de dados realizados; tentativa de extinção ou limitação de Conselhos onde as sociedade civil tem assento, como está acontecendo na área de politica nacional de drogas e também segurança pública; aumento de penas, encarceramento em massa e limitação das prerrogativas de defesa jurídica, através da regulamentação definitiva da prisão antes de esgotados todos os recursos legalmente cabíveis, isto tudo ainda somado á promoção da imparcialidade e cerceamento dos direitos individuais de defesa e também de liberdade de imprensa, através da ação de seu Ministro da Justiça que sabidamente é também autoritário e parcial, conforme demonstrou na condenação politica e encarceramento (antes de esgotados todos os recursos da defesa) do qual foi vítima o ex-presidente Lula.
Concluindo, evidencia-se que lista de medidas pró-autoritarismo no Brasil realmente é grande e cresce de exponencialmente, sendo que procurei aqui me ater apenas ás medidas que se relacionam aos ataques á democracia, sem prejuízo de uma série de outras iniciativas não citadas no pequeno espaço deste texto, razão pela qual acredito que que se alguém diz defender o regime democrático, mas até agora ainda alegava alguma dúvida ou menosprezava o projeto autoritário em marcha no Brasil, creio que, a partir destas últimas declarações de Bolsonaro, não possuirá doravante mais motivos para duvidar ou então desculpas para justificar sua submissão ou omissão ante seu Governo, salvo, evidentemente, se estiver auferindo lucros ou alguma outra vantagem pessoal do Estado, o que, nesta hipótese, estará dispensado de maiores explicações motivacionais.
*Aderson Bussinger, Advogado, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, Conselheiro da OAB-RJ, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.