Thaíse Kemer
Tornou-se popular a pesquisa publicada pelo Latinobarómetro[2], em 2018, segundo a qual o Brasil é o campeão latino-americano em desconfiança interpessoal. De acordo com a investigação, a confiança interpessoal pode ser entendida como uma medida de quanto um determinado país foi capaz de solucionar os principais problemas que impedem sua integração. Verifica-se, assim, que a confiança pode estar relacionada a dinâmicas sociais mais profundas, o que nos leva ao seguinte questionamento: por que devemos refletir sobre a confiança e sua relação com a democracia?
Para alguns autores, o cenário de desconfiança parece ser indício de debilidade para a sustentação de uma democracia. De fato, segundo Newton e colegas (2018), a confiança funcionaria como uma espécie de “cola” das relações sociais, na medida em que facilita a coordenação e cooperação entre os indivíduos. O cientista político norte-americano Robert Putnam corrobora essa perspectiva. Em seus livros “Making Democracy Work”, de 1993, e “Jogando Boliche Sozinho”, de 2015, o autor destaca que a vivência em comunidade fortalece um sentido de coletividade que favorece a democracia, por meio da geração de capital social. Capital social é um conceito que se associa ao valor das ligações entre indivíduos para a geração de redes sociais e de normas de reciprocidade entre as pessoas (Putnam, 2015, p. 14). Segundo Putnam, a confiança é essencial para a formação do capital social, pois está relacionada à previsibilidade sobre o comportamento de atores independentes. Nesse sentido, o autor argumenta que a confiança interpessoal funciona como um potente facilitador da cooperação, pois está relacionada a uma expectativa de conhecimento dos outros quanto a suas disposições e possíveis cursos de ação, o que favorece iniciativas colaborativas.
Nesse contexto, é interessante notar que a cooperação também pode favorecer o aumento da confiança. Segundo Putnam, redes de engajamento cívico, como associações de bairro, grupos artísticos e cooperativas, contribuem para aumentar a confiança social. Para o autor, essas redes cívicas contribuem de diversas formas para reforçar a confiança: elas aumentam a colaboração entre pessoas, fortalecem a expectativa de convergência em torno de propósitos comuns, facilitam a comunicação comunitária e servem de base para cooperações futuras. Assim, ao estreitarem os elos sociais que formam o tecido comunitário, as redes de engajamento cívico contribuem para o aumento da confiança interpessoal, para a geração de maior capital social e para o reforço do sentido de coletividade. Nas palavras do autor: “quanto mais densas forem essas redes em uma comunidade, maior a probabilidade de que seus cidadãos possam cooperar para benefícios mútuos” (Putnam, 1993, p. 171, tradução nossa).
Assim, baixos níveis de confiança interpessoal sugerem um campo menos fértil para a colaboração em sociedade, o que enfraquece laços sociais relevantes para a sustentação do regime democrático. Isso é particularmente problemático se pensarmos na concepção contemporânea de cidadania, a qual inclui tanto o exercício de direitos e deveres quanto uma participação ativa em assuntos de interesse público.
Essas breves reflexões sugerem que o baixo nível de confiança no país pode ser melhor compreendido por meio de uma análise das dinâmicas nas cidades brasileiras, pois elas constituem o palco em que essas relações interpessoais acontecem. Assim, a compreensão das raízes da baixa confiança interpessoal no Brasil exige uma análise estrutural da temática, de forma a relacioná-la a um quadro geral mais amplo da democracia brasileira e de seus desafios sociais, políticos e econômicos.
Nesse sentido, o Instituto Sivis desenvolveu o Índice de Democracia Local, que trabalha a confiança e a colaboração interpessoal em contexto analítico mais amplo relativo à qualidade da democracia em cidades. Os resultados da aplicação na cidade de São Paulo serão divulgados no dia 5 de dezembro. Assim, esperamos que esse trabalho contribua para lançar um novo olhar para os níveis de confiança interpessoal do Brasil contemporâneo: não como um dado imutável, mas, sim, como um sintoma social que tem potencial para ser modificado por meio do reforço das bases democráticas em nível local.
[1] Thaíse Kemer é Gestora de Pesquisas do Instituto Sivis e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).