“... devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi expressado nessa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens”, Pablo Neruda.
Foto: Divulgação/Internet - A humanidade como um todo, diante desta “pandemia global” vive um momento nunca visto antes – mas, o Brasil, em especial, convive de 2016 para cá, com algo inexplicável... Bem antes desse vírus invisível e mortal que ronda nossos lares aparecer na cidade de Wuhan na China – a ignorância e o ódio já tinha rachado o nosso país ao meio deixando a mostra fendas e cicatrizes profundas, nos mostrando que o tecido social que forma as nossas instituições estava contaminado pela ganância e pelo poder das oligarquias que por mais de 500 ANOS mandaram e desmandaram POR AQUI...
Vejam que na época, 1971, quando Pablo Neruda soube que havia enfim recebido o Prêmio Nobel de Literatura, não só ele como seu próprio país, o Chile, viviam realidades muito diferentes da que viria a lhes assaltar dois anos depois.
Lembra o escritor e jornalista Vitor Paiva, que Gabriel Gárcia Márquez, considerava Neruda como “o maior poeta do século 20, em qualquer idioma” e chamou de “milagre”, conforme declarou em entrevista diante da notícia. “Enfim parece que sou mesmo agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Ótimo, vocês sabem que nós, poetas, sempre estamos esperando milagres. E o milagre realizou-se”, afirmou Neruda.
Em seguida, segundo Paiva, "o poeta expôs outra alegria que lhe acometia junto do Nobel: a eleição de Salvador Allende como presidente do Chile e o primeiro socialista a ser eleito democraticamente na América Latina. “O presidente Allende acaba de me felicitar, em nome do governo e do povo chileno”, disse Neruda.
Dois anos depois, no fatídico 11 de setembro de 1973, Allende seria derrubado e assassinado pelas tropas de Pinochet, que instauraria uma longa ditadura no país, e doze dias depois do golpe militar, o próprio Neruda viria a falecer, em circunstâncias suspeitas que hoje sugerem também um assassinato", ressalta.
“Mas a poesia e a memória de Neruda, assim como de Allende, permanecem – e se fazem mais necessárias do que nunca, em um mundo tão polarizado, sombrio e perigoso como o que vivemos.”
Vale a pena entrar no site: Hypeness, onde o jornalista conta essa história por inteiro...
Relembro aqui o trechos do seu discurso onde ele nos dá uma aula de literatura, uma aula de civilidade, compreensão e amor... (JMTS)
Senhoras e Senhores:
Não aprendi nos livros nenhuma receita para a composição de um poema; e também não deixarei impresso nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. (...)
(...) De tudo isso, amigos, surge uma lição que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos levam ao mesmo ponto: a comunicação daquilo que somos. E é preciso atravessar a solidão e a aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico no qual podemos dançar torpemente ou cantar com melancolia: mas nesta dança ou nesta canção estão consumados os mais antigos ritos da consciência, da consciência de ser homens e de crer num destino comum.(...)
(...) O poeta não é um pequeno deus. Não, não é um pequeno deus. Não está marcado por um destino cabalístico superior ao daqueles que exercem outros misteres é ofícios. Tenho expressado frequentemente que o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada dia: o padeiro mais próximo, que não pensa que é deus. Ele realiza a sua majestosa e humilde tarefa de amassar, colocar no forno, dourar e entregar o pão cada dia, com uma obrigação comunitária. E se o poeta chegar a alcançar esta consciência simples, poderá também a consciência simples converter-se em parte de um colossal artesanato, de uma construção simples ou complicada, que é a construção da sociedade, a transformação das condições que rodeiam o homem, a entrega de uma mercadoria: pão, verdade, vinho, sonhos. Se o poeta se incorporar a esta luta nunca gasta a fim de consignar cada qual nas mãos do outro sua ração de compromisso, sua dedicação e sua ternura pelo trabalho comum de cada dia e de todos os homens, o poeta tomará parte no suor, no pão, no vinho, no sonho da Humanidade inteira. Somente por este caminho inalienável de ser homens comuns chegaremos a restituir à poesia o amplo espaço que lhe é recortado em cada época, que nós mesmos lhe recortamos em cada época.
(...) Ampliando estes deveres do poeta, na verdade ou no erro, até as suas últimas consequências, decidi que a minha atitude dentro da sociedade e perante a vida devia ser também humildemente partidária. Decidi isso vendo gloriosos fracassos, solitárias vitórias, derrotas deslumbrantes. Compreendi, imerso no cenário das lutas da América, que minha missão humana era a de unir-me à extensa força do povo organizado, unir-me com sangue e alma, com paixão e esperança, porque somente desta torrente impetuosa podem nascer as mudanças necessárias para os escritores e para os povos. E embora minha posição tenha causado e cause objeções amargas ou amáveis, o certo é que não encontro outro caminho para o escritor dos nossos amplos e cruéis países, se não queremos que a escuridão floresça, se pretendemos que os milhões de homens que ainda não aprenderam a ler-nos nem a ler, que ainda não sabem escrever nem escrever-nos, se estabeleçam no terreno da dignidade sem a qual não é possível serem homens integrais.
Herdamos a vida dilacerada dos povos que arrastam um castigo de séculos, os povos mais edênicos, os mais puros, aqueles que construíram com pedras e metais torres milagrosas, joias de fulgor deslumbrante; povos que de repente foram arrasados e emudecidos pelas épocas terríveis do colonialismo que ainda existe.
Nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança. Mas não há luta nem esperança solitárias. Em todo homem se juntam as épocas remotas, a inércia, os erros, as paixões, as urgências do nosso tempo, a velocidade da História. Mas o que seria de mim se eu, por exemplo, tivesse contribuído de alguma maneira com o passado feudal do grande continente americano? Como poderia eu levantar a cabeça, iluminada pela honra que a Suécia me outorgou, se não me sentisse orgulhoso de ter tomado uma mínima parte na transformação atual do meu país? É preciso olhar o mapa da América, encarar a grandiosa diversidade, a generosidade cósmica do espaço que nos rodeia, para entender que muitos escritores se negam a compartir o passado de opróbrio e de pilhagem que obscuros deuses destinaram aos povos americanos.
Escolhi o difícil caminho de uma responsabilidade compartida e, em vez de reiterar a adoração ao indivíduo como sol central do sistema, preferi entregar com humildade o meu serviço a um considerável exército que pode errar às vezes, mas que caminha sem descanso e avança cada dia, enfrentando tanto anacrônicos recalcitrantes, quanto enfatuados impacientes. Porque acredito que meus deveres de poeta não me indicavam somente a fraternidade com a rosa e a simetria, com o exaltado amor e a nostalgia infinita, mas também com as ásperas tarefas humanas que incorporei à minha poesia.
Há exatamente cem anos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “À l’aurore, armes d’une ardente patiente, nous entrerons aux splendides Villes” (Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades).
Acredito nesta profecia de Rimbaud, o vidente. Venho de uma obscura província, de um país separado de todos os outros pela sua talhante geografia. Fui o mais abandonado dos poetas e minha poesia foi regional, dolorosa e chuvosa. Mas sempre tive confiança no homem. Jamais perdi a esperança. Por isso talvez tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira.
Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi expressado nessa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.
Assim a poesia não terá cantado em vão.”
Pablo Neruda, 1971