“Não sei se isso me faz bem, mas é o jeito que encontrei de esquecer alguém – agora vaza, vá fazer o que tens que fazer”, me disse com uma certa irritação.
Ontem, logo após o meio dia, em frente ao túnel me deparei com um andarilho, sentado na calçada, ou melhor, sentado no chão, tendo em vista que naquele local, não tem calçada, bem em frente o túnel da Rua Castro Alves, esquina com a Av. Iguaçu.
Lá estava ele, olhos fixos no horizonte, cercado dos seus pertences, quatro ou cinco sacos, com coisas catadas do lixo, entre elas uma garrafa pet cheia de água e um pãozinho francês enrolado num plástico.
- Boa tarde, fui logo o saudando...
- “Boa tarde”, me respondeu – sem mesmo desviar o olhar.
- Como estão as coisas? Pelo visto, nada boa, pelo o que estou vendo.
- “Por que não haveria de estar? – me respondeu e, desta vez, voltando a cabeça e com os olhos bem abertos”.
- Pergunto pelo que estou vendo, a sua situação, sentado neste sol, nessas condições – respondi.
- “Estais enganado. Estou estacionado aqui nesse momento no meu tempo, já percorri o mundo e estou sentindo o que todos deveriam sentir. Logo isso vai passar” – me respondeu, voltando o olhar para frente como se estivesse meditando ou se fixando em algo bem distante...
- Não está lhe faltando nada. Como faz para se alimentar, tomar banho, descansar, perguntei.
- “Não me falta nada, estou bem – tenho saúde, tenho água (apontando para a garrafa pet), tenho pão (pão francês) e a energia do sol que não me custa nada”.
- Quantos anos tem e qual o seu nome?
- “Tenho 45 anos e o meu nome a quem interessa?”, me respondeu, mudando o tom e a feição, como se eu estivesse lhe incomodando, pertubando o seu sossego mental.
- Não pensa em ter uma casa, onde morar, com quem conversar? Insisti.
- “Casa? Pra que casa? Para que carro? Eu tenho o mundo como casa e essa liberdade de estacionar onde eu quiser, me satisfaz. Por que quero mais?”.
- Estou vendo que mesmo vivendo assim, estais sereno, e, pelo visto, uma pessoa feliz. Essa vida lhe faz bem?
- (Ficou em silêncio, como se estivesse pensando, antes de responder) – “Não sei se isso me faz bem, mas é o jeito que encontrei de esquecer alguém – agora vaza, vá fazer o que tens que fazer”, me disse com uma certa irritação.
Observei que na esquina do outro lado da Rua, na Loja 10, duas garotas, funcionárias daquele estabelecimento estavam na porta observando o meu bate papo com esse Andarilho - que pelas respostas parece lúcido dentro do seu mundo - e, muito, muito louco mesmo.
Ao me aproximar me disseram – “você conseguiu conversar com ele. Nós fomos levar uma marmita para ele hoje ao meio dia e ele ficou bravo, não aceitou e nos mandou se afastar...” Disse a elas o que acabava de ouvir e que está nesta matéria.
Após esse papo, me lembrei da história de vida do andarilho Knulp, que estão entre os textos mais encantadores de Hermann Hesse – “temas aprofundados que abordam a experiência existencial, a formação da personalidade, a contestação de velhos valores”.
Knulp, “um hippie que no fim do século XX, em plena Alemanha, vagueia de cidade em cidade se hospedando na casa de conhecidos, que lhe dão teto, comida e algum afeto”.
A exemplo deste Andarilho, só que em outras condições, se declarava um amante da liberdade – “e mesmo se hospedando na casa das pessoas, evitava construir relações mais profundas e estabelecer laços definitivos. Demonstrava ser uma espécie de esteta em fuga de um mundo crivado de imposições e crenças antiquadas”.
Na Sinop do livro, “Knulp: Três histórias da vida de um andarilho”, o escritor Hermann Hesse, relata que “à medida que os anos foram passando, amigos o repreendem por ter desperdiçado seu talento e sua saúde com uma existência vadia, entregue à boemia e ao improviso”.
“O andarilho, ainda que debilitado, não lhes dá ouvidos e segue desfrutando dos prazeres mais simples, aferrado aos breves momentos de felicidade”.
Esse modo de vida marginal levaria Hesse a preconizar: “Se pessoas talentosas e corajosas como Knulp não conseguem encontrar um lugar em seu entorno, o entorno é tão cúmplice disso quanto o próprio Knulp”. Uma declaração que põe em xeque os padrões sociais daquele tempo ― e da atualidade.
No caso desse Andarilho (em frente ao túnel), talvez, se analisarmos com mais profundidade essa sua declaração: “Não sei se isso me faz bem, mas é o jeito que encontrei de esquecer alguém...", vamos encontrar a causa dessa sua fuga do mundo social que, tudo indica, deve ter sido uma profunda decepção amorosa. Um amor que ele tenta esquecer e que, ao mesmo tempo, alimenta diariamente essa sua paranóia mental - que, para ele funciona como uma espécie de energia que o faz vagar, vagar e vagar... Freud, explica isso? Talvez...