Fonte: Tribuna da Imprensa - Cristovam Buarque - Não é difícil perceber como as manchetes das revistas das últimas semanas se referem à tragédia humana da boate Kiss, de Santa Maria: “Quando o Brasil vai aprender?”, “A asfixia não acabou”, “Tão jovens, tão rápido e tão absurdo” e “Futuro roubado”. É também uma tragédia que pode ser associada às escolas de todo o Brasil. É como se a boate de Santa Maria fosse uma metáfora da escola brasileira.
Na primeira delas, os jovens perderam a vida por inalarem um gás venenoso; na outra, as crianças perdem o futuro por não inalarem o oxigênio do conhecimento. A imprevidência de proprietários, músicos e fiscais levou à morte por falta de ar; a de políticos, pais e eleitores leva a uma vida incompleta por falta de educação. A tragédia despertou para os riscos que correm nossos jovens em seus fins de semana em boates, mas ainda não despertou para o que perdem nossas crianças e jovens no dia a dia de suas escolas.
Estamos fechando boates sem sistemas de segurança, mas ainda deixamos abertas escolas sem qualidade. Os pais começaram a não deixar seus filhos irem a boates inseguras, mas levam confiantemente suas crianças a escolas que não asseguram o futuro delas. Exigimos que as boates tenham portas de emergência, mas não exigimos que as escolas sejam a porta para o futuro das crianças.
A tragédia de Santa Maria provoca a percepção imediata da fragilidade vergonhosa na segurança de boates, mas a tragédia de nossa educação, apesar de suas vítimas, não é percebida. Isso porque ela é uma tragédia à qual nos acostumamos e que nos embrutece, ou porque são crianças invisíveis pela pobreza, ou ainda porque somos um povo sem gosto pela antecipação, só ouvimos o grito de fogo e vemos a fumaça depois que eles matam. Por isso fechamos os olhos à tragédia da educação que hoje devasta a economia, a política e o tecido social do Brasil.
ABANDONO DAS ESCOLAS
O abandono de nossas escolas não mata diretamente, mas dificulta o futuro de cada criança que não estuda. Se as escolas fossem de qualidade para todos, teríamos menos violência urbana, maior produtividade, mais avanços no mundo das invenções de novas tecnologias e um país melhor.
Por isso, ao mesmo tempo em que choramos as trágicas mortes dos jovens de Santa Maria, choremos também pelo futuro das crianças que não vão receber a educação necessária para enfrentar o mundo.
Choremos pelos que perderam a vida na boate ao respirar o ar venenoso e pelos que não vão receber nas escolas o ar puro do conhecimento.
Não vamos recuperar as vidas eliminadas na boate Kiss, podemos apenas chorar e nos envergonharmos. Mas podemos evitar o desperdício das vidas que estão hoje nas “escolas Kiss”: metáfora que une boate e escola, sobretudo quando nos lembramos de que a boate se chamava Kiss, nome que deveríamos dar também às nossas escolas de hoje: beijo do desprezo. Desprezo pelas vidas de jovens ou pelo futuro de nossas crianças.
(transcrito do jornal O Tempo)