ANDRÉ BARROS -
A trágica relação entre o Estado e os moradores dos morros cariocas é sem dúvida fruto de uma série de injustiças, entre elas a proibição da maconha, que leva ao mercado ilegal...
Fonte: Tribuna da Imprensa - Em 11 de outubro de 2016, dia seguinte ao tiroteio nas comunidades do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, onde morreram três pessoas e três policiais foram feridos, incluindo o capitão da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), fui à reunião convocada pela Associação de Moradores PPG, sigla com os nomes das comunidades.
A pedido da associação, compareci na condição de vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro. Estava receoso, pois, na véspera, os tiros, rajadas, bombas e explosões haviam sido pesados e deixaram em pânico moradores dos bairros de Copacabana, Ipanema, Lagoa e Botafogo. A terrível imagem de um jovem caindo de uma enorme pedreira após ser baleado por policiais viralizou na internet.
Marquei com um representante da associação na subida da ladeira Saint Roman. Na rua Sá Ferreira, que dá acesso à ladeira, todos com coletes à prova de balas, repórteres da Globo, SBT e Record pareciam filmar um lugar em guerra onde não poderiam entrar. Carros da polícia passavam em alta velocidade, reforçando a farsa da guerra. Subindo a pé, logo percebi que não era bem aquilo que estava acontecendo. Os moradores dos morros caminhavam tranquilamente pela ladeira das comunidades.
Do meio da ladeira em diante, acompanhei o representante da associação por uma longa escada. Quando chegamos na primeira viela, vi alguns jovens armados e com rádios de transmissão. Moradores caminhavam com seus filhos pequenos, enquanto alguns sentados conversavam tranquilamente. Eles convivem com a suposta guerra do tráfico armado de drogas, são cercados pelo comércio de substâncias ilegais que precisa dessa fachada para vender armas e munições. Uma juventude sem escolas, canetas e com armamento pesado, que sabe-se lá como chega a suas mãos.
Na reunião da associação, os moradores demonstravam todo o orgulho de sua comunidade. Criticavam abertamente tanto a polícia quanto os soldados do tráfico. Falaram do pânico das mães que corriam atrás de seus filhos pelos morros quando tudo começou, bem no horário em que as pessoas vão trabalhar e as crianças saem para estudar. Ficaram indignados com o colégio que liberou os alunos, deixando os responsáveis perdidos e procurando seus filhos no meio de toda aquela violência.
A UPP, que já dialoga pouco com a associação, numa situação de violência, não tem diálogo nenhum. Tentam até criminalizá-los, porque conhecem os vendedores tachados de traficantes desde que nasceram. Essas mães e pais jamais desejaram que seus filhos virassem soldados do tráfico e muito menos querem vê-los mortos. Na reunião, narraram que ouviram os policiais recebendo pelo rádio autorização para matar quatro jovens presos se eles se movessem. Cheios de coragem, foram até o local, a fim de se solidarizar com parentes dos detidos e impediram uma tragédia ainda maior.
Toda essa situação de militarização da polícia, assim como das armas nas mãos de jovens, adolescentes e até crianças, precisa ser denunciada! A absoluta falta de políticas sociais, o racismo e a ilegalidade de algumas substâncias tornadas ilícitas alimentam essa farsa. Uma proposta radicalmente contrária a esse falido sistema penal de segurança pública deve começar com a legalização da maconha.
Os moradores não estão armados, há famílias que vivem há décadas ou mesmo mais de um século nas comunidades. Ali construíram suas casas, suas vidas, fazem “batuque e festinha”, como cantou seu mais ilustre morador, Bezerra da Silva: “gosto de todos, mas o Cantagalo é que é meu lugar.”