SIRO DARLAN - Fonte: Tribuna da Imprensa
A carne mais barata do mercado é a carne negra. Diz a música cantada por Elza Soares denunciando o descaso com os irmãos afrodescendentes. O Brasil está sendo vítima de vários acontecimentos tristes e inesperados no início de 2019. De Brumadinho, passamos por uma tempestade destruidora com vidas sacrificadas pela negligência do poder público, nova chacina promovida pela polícia que mais mata no planeta, estimulada por seu líder que manda “atirar na cabecinha”. Jovens atletas, cheios de vigor e esperança são queimados numa câmara de fogo, construída pela incúria de falta de cuidado com a vida humana.
O perfil das vítimas demonstra que sua cor de pele diz muito de sua situação de descartados. Assim como a engorda dos frangos nos frigoríficos que transformou o Brasil no maior exportador de frangos, nossos jovens atletas só servem como expectativa do lucro que gerarão os poucos que se destacarem no mercado. Aos demais, as batatas. O Estatuto da Criança e do Adolescente está em vigor há 29 anos e é carta fora do baralho para uma sociedade do descarte. Proteger a infância ainda não é prioridade em nenhuma esfera da administração pública.
Interessa mais promover a exclusão cada vez maior e mais cruel de pessoas em processo de desenvolvimento com propostas que reduzem a maioridade penal, aumentam o tempo de cumprimento das medidas sócio educativas e promovem chacinas como solução final e imediata. O aperfeiçoamento do sistema sócio educativo e a garantia dos direitos fundamentais de crianças e jovens das favelas e periferia não faz parte da preocupação dos administradores públicos.
Visando proteger jovens atletas que vem de seus estados longínquos e permanecem em regime de semiescravidão, vivendo em alojamentos insalubres, sem acompanhamento por equipes técnicas, alguns sendo abusados por assédios morais e sexuais, sem acompanhamento escolar e submetidos a treinamentos torturantes, o Juizado da Infância e da Juventude disciplinou, o que já estava previsto no Estatuto, explicitando as obrigações das agremiações esportivas, através da Portaria 023/2003. Para tanto fiscalizou e acompanhou o atendimento aos atletas até 2004.
Posteriormente, seguindo a política do desmonte, o Juizado foi pulverizado, sua equipe técnica desmontada, a fiscalização praticamente acabou. Os Conselhos Tutelares, que nunca existiram na forma prevista em lei, nunca receberam os insumos materiais necessários e também deixaram abandonados os atletas em seus clubes. Além de direito, a prática do futebol é bastante estimulada, no Brasil e no mundo, uma vez que melhora a qualidade de vida das crianças e adolescentes, contribui para mudanças de comportamentos sociais, ensina à criança e ao adolescente o respeito pelas regras, pela integridade física do adversário e oferece condições fundamentais para o pleno desenvolvimento.
Por outro lado, como ocorre com os demais direitos que devem ser considerados de forma ampla, a garantia do direito ao esporte e lazer, como elemento integrador, merece observância, uma vez que devem ser assegurados também, e sem prejuízo algum, outros direitos fundamentais, como os direitos à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária, à integridade física e psicológica, dentre tantos outros.
No Brasil, mesmo com a proibição da realização de atividades laborais por menores de quatorze anos e com a previsão da proteção integral de crianças e adolescentes, as divisões de base dos clubes de futebol profissionais podem se dividir nas seguintes categorias: fraldinha (7 a 9 anos), dente de leite (10 a 11 anos), pré-mirim (11 a 12 anos), mirim (12 a 13 anos), infantil (14 a 15 anos), infanto-juvenil (15 a 16 anos), juvenil (17 a 18 anos) e júnior (17 a 20 anos).
Isso quer dizer que o ingresso, a permanência e o avanço nas divisões de base dos clubes são os grandes objetivos para aqueles que almejam seguir a carreira no futebol, que, vale ressaltar, é bastante concorrida. Em virtude disto, há uma tendência ao excesso nas cargas de treinamento, alojamentos em péssimas condições, ausência de formalização de contratos, abandono por parte dos agenciadores, ou seja, as crianças e os adolescentes inseridos no mercado de jogadores profissionais perdem o direito à convivência comunitária e familiar, à educação, ao lazer, à identidade cultural, entre outros, e tudo isso parece fazer parte do caminho percorrido para obtenção do sucesso.
Nesse contexto de violações que os meninos e meninas que se dedicam às mais variadas práticas esportivas visando uma profissionalização no campo esportivo, não podem ficar à mercê da avareza do mercado, como se fossem mercadorias a serem engordadas e colocadas na prateleira de consumo, mas necessitam da proteção integral que passa pela capacitação dos agentes de treinam e cuidam desses atletas m todas as categorias garantindo-lhes o respeito e a dignidade e acesso a todos os direitos próprios de pessoas em desenvolvimento.
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Siro Darlan, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia.