Da Assessoria - O historiador e professor da UNILA Fernando Romero traça um panorama sobre o crescimento chinês das últimas décadas e fala sobre a influência do país no plano internacional
País onde teve início a pandemia de Covid-19, a China ganhou mais visibilidade e despertou interesse no Brasil e no mundo. A pandemia, no entanto, expôs um grande desconhecimento a respeito do país e também preconceito, externado em termos como “vírus chinês” em citações sobre o coronavírus. “Há uma série de elementos culturais desconhecidos pelas pessoas, que interpretam a realidade da China mais pelo sentido comum, a partir de informações muito simples e que não deixam lugar para entender a enorme complexidade que é a China”, adverte o professor da UNILA Fernando Romero.
Romero é o entrevistado do último episódio desta temporada da websérie Fator Ciência, produzida pela Secretaria de Comunicação (SECOM) e dedicada ao tema Covid-19 e suas consequências. Historiador, com mestrado em Desenvolvimento Econômico e doutorado em História, Romero fala sobre a China, seu crescimento econômico, a relação com os demais países e também sobre o grande desconhecimento do Ocidente a respeito do país asiático. O episódio está disponível no canal da UNILA no YouTube e também em formato de podcast no Spotify.
Para o professor, as falas de autoridades, não só do Brasil, como de outros países, notadamente os Estados Unidos, atribuindo ao coronavírus a pecha de “vírus chinês”, têm componentes de disputa geopolítica, econômica e financeira, mas também um “desconhecimento enorme” sobre a China.
“Essas teorias da conspiração cumprem essa funcionalidade de apresentar, de forma simplista, uma causa ou dizer que alguém operou com alguma intenção para que esta epidemia, convertida em pandemia, se desenvolvesse. Obviamente, no caso da China, há a distância cultural. Apesar de estudarmos a China, de alguma maneira, estamos quase que começando, em razão do grau de complexidade que tem o país”, comenta, listando algumas condições que ilustram essa complexidade: a China tem 1,4 bilhão de habitantes, 56 etnias e 14 de suas cidades superam os 10 milhões de habitantes. “Uma situação de enorme complexidade e desconhecimento, e [também de] distância idiomática – uma língua que não temos a tradição cultural de aprender e ter uma comunicação direta. Portanto, se faz uso dessa distância cultural para apresentar [a situação] de maneira simplificada. Houve, desde o início, uma [intenção] de culpabilizar a China, de se falar em vírus chinês, de doença de Wuhan”, diz.
É preciso lembrar, comenta Romero, em relação aos hábitos alimentares chineses, que o país viveu períodos de fome e miséria, desde a Guerra do Ópio até a revolução popular, em 1949. “Essa situação levou a mudanças culturais importantes a ponto de a dieta incorporar o consumo de animais selvagens”, explica. Além disso, diz ele, a China, com seus 1,4 bilhão de habitantes, tem uma enorme diversidade culinária.
O Ministério de Relações Exteriores da China contestou diplomaticamente essas teorias conspiratórias, lembra Fernando Romero. “Essas razões internacionais de se apresentar a China como a culpada da epidemia tiveram, por parte da China, uma contrapartida no terreno das relações internacionais, ao demonstrar como havia sido o controle da epidemia no país e também uma política de cooperação internacional, para neutralizar os efeitos dessa imagem inicial que se tentou passar”, explica.
Para ele, o fato de a China se apresentar como um agente de solidariedade internacional – com a doação de equipamentos e a cessão de médicos para o atendimento aos doentes de outros países – segue a lógica de seus próprios interesses em nível global. “Mas há um componente humanitário diferente do que estão realizando outras potências. Os Estados Unidos chegaram a confiscar instrumentos médicos e respiradores. É uma apresentação muito diferente para a China”, comenta. “E tem de acrescentar, também, o peso que tem a economia chinesa para neutralizar essa ofensiva diplomática e econômica dos Estados Unidos e dos países que se subordinam a ele também no plano internacional.”
Sobre a discussão a respeito de imputar responsabilidade pela pandemia, a China optou por uma resposta “muito contunde” e que está relacionada à disposição do país de tornar-se a primeira potência econômica mundial. Alguns autores previam que isso seria realidade em 2050, outros em 2030, mas a crise sanitária global está oferecendo uma aceleração dessas condições, aponta Romero. “A China, neste cenário, com os Estados Unidos tendo os resultados que estão tendo com a política do governo Trump, principalmente sobre a pandemia, pode superar o potencial econômico e tecnológico estadunidense e colocar-se numa posição de liderança política que os Estados Unidos desempenharam muito bem, sobretudo nos anos 70, e que, nas últimas décadas, tem tido um particular desgaste”.
Virada econômica
Romero comenta que o ponto de inflexão na história da China foi a reforma econômica, de 1978, processo comandado por Deng Xiaoping. “O impulso que Deng Xiaoping deu à reforma econômica abriu todo o processo de mudança da economia chinesa”, diz, explicando que o esse processo incluiu uma reforma da indústria, da agricultura, da área tecnológica e das forças armadas. “Para alguns, aí se gesta, fundamentalmente, uma mudança nas relações sociais de produção chinesa e que tem a ver com a forma de reprodução da vida neste gigante da Ásia.”
Essa ideia abre um debate, explica o docente, com outras correntes de pensamento que veem a continuidade do socialismo na China em razão do peso relativo que o Estado ainda tem. “Fundamentalmente, se abrem relações capitalistas de produção”, ressalva. Ele lembra que a reforma econômica trouxe mudanças na participação acionária das empresas estatais e a chegada de capitais estrangeiros à China. “Reconfigura, obviamente, o que é a economia da China.”
A China optou por um processo de “crescimento silencioso”, observa o pesquisador. “Durante muito tempo, esse processo se desenvolveu sob o plano de crescer em silêncio e não fazer muito barulho no cenário internacional”, comenta. Desde 1978, diz ele, a China vem apresentando um crescimento médio de 10% ao ano, passando, no século 21, de terceira potência à segunda posição em escala global. Esse resultado, reforça Romero, não foi alcançado de um ano para o outro, mas ao longo das últimas décadas.
Esse processo foi acompanhado de “certa abertura” por parte das potências ocidentais a respeito da China, explica. Essa abertura teve início em 1971, quando a China passou a integrar a Organização das Nações Unidas (ONU), como um contrapeso à presença da União Soviética e, por isso, seu sistema político não recebe questionamentos.
É nesse cenário que acontece, também, a primeira visita de um líder chinês aos Estados Unidos após a revolução popular de 1949. “Isso abre um antecedente importante em termos de que tipo de relações a China vai estabelecendo com o Ocidente, com as potências ocidentais, com o próprio Estados Unidos.” Essa abertura, ressalta Romero, “ao mesmo tempo está marcada no plano das relações internacionais por uma forte posição de autonomia, de soberania chinesa, de não se subordinar aos ditames dos Estados Unidos ou de outras potências, ou, sequer, aos interesses das empresas internacionais que operam em seu território”.
O resultado pode ser observado a partir de alguns dados, conforme aponta Romero: hoje, a China é a primeira potência industrial, chegando a essa posição antes da pandemia; os quatro principais bancos do mundo são bancos estatais chineses; a China tem uma capacidade financeira importante; um terço dos bônus do tesouro estadunidense pertence à China.
“Portanto, esta posição de liderança não se constrói de um ano para outro, mas é um processo de longa duração que levou a essa condição. E não é menor o grau de autonomia da China com relação a suas relações exteriores”, comenta, lembrando que essa autonomia vem desde que suas relações sociais de produção se desenvolviam sob um regime “estritamente socialista”. “Na década de 60, a China chega, inclusive, a romper com a própria União Soviética, que de alguma maneira exercia a liderança no campo socialista”, exemplifica.
A entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, e o crescimento exponencial que teve nas duas décadas do século 21, explica o pesquisador, levam o país a uma situação de potência de segunda ordem no plano internacional. Com Xi Jinping, atual dirigente do país, também “aparece a ideia de alcançar o sonho chinês, uma China que não teme alcançar posições de liderança em nível mundial, conseguir prestígio e respeito no plano internacional”.
“É preciso pensar com certa prudência e, nesse sentido, não se pode ver a crise sanitária global como um acelerador dessas possibilidades. Estaríamos em um momento que seria mais bem interpretado como um processo de transição. De toda maneira, a China mantém em suas diretrizes políticas a ideia de ser uma potência não hegemônica e uma discursabilidade que busca certa legitimação em termos de crescimento comercial, de relações financeiras com países de todo o mundo”, discorre.
Para Romero, o Brasil e demais países da América Latina precisam desenvolver relações de aproximação econômica, política e cultural com todos os países. “Mas não podemos entrar numa relação de nova dependência ou subordinação de nossas tradições políticas e econômicas de acordo com os capitais que hoje começam a liderar a economia no cenário internacional”, ressalva.
Exemplificando o peso da China hoje para a América Latina, inclusive o empresariado latino-americano, o professor lembra a reação de parlamentares e políticos brasileiros às declarações de Eduardo Bolsonaro que abriram uma crise com o país asiático. “Todas as dimensões econômicas e políticas que [a China] têm com nossos países não podem ser negligenciadas, simplesmente, por uma visão simplificada da realidade, ao associar uma enfermidade a determinado país ou a determinada nacionalidade.”