Fonte: Gustavo Tapioca Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.
Lula parece ter compreendido o que Maquiavel ensinou há cinco séculos: quem sobe ao poder com apoio de mercenários, cedo ou tarde, precisa livrar-se deles
Quando o príncipe florentino Nicolau Maquiavel escreveu, em 1513, que “as armas mercenárias são inúteis e perigosas”, ele se referia aos exércitos contratados pelos governantes italianos de seu tempo. Pagos para lutar, mas sem lealdade, esses soldados trocavam de lado diante da primeira oferta mais vantajosa.
Meio milênio depois, o aviso de Maquiavel parece ecoar em Brasília, agora não nas batalhas de Florença, mas nas trincheiras da política. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou um movimento discreto, porém calculado. A substituição de aliados do centrão por quadros de confiança e técnicos experientes, nos ministérios e cargos estratégicos.
A decisão vem após dois anos de negociações exaustivas com líderes partidários que exigem verbas, cargos e favores em troca de apoio no Congresso, embora várias vezes não tenham cumprido o compromisso assumido até em reuniões com o presidente.
Era o preço que o governo pagava para garantir governabilidade, aprovar pautas e neutralizar sabotagens. Agora, após várias traições, o governo decidiu agir. E ula parece aplicar, à sua maneira, uma lição tirada diretamente de O Príncipe.
Da guerra italiana à guerra parlamentar
Maquiavel observava que os governantes que dependiam de tropas mercenárias estavam condenados à derrota. Lutavam apenas enquanto eram bem pagas e não tinham fidelidade à pátria. O mesmo vale, no terreno da política, para os aliados por conveniência — partidos e líderes que apoiam o governo enquanto a recompensa compensa.
Lula conhece bem esses “mercenários da governabilidade”. Durante o primeiro ano de seu terceiro mandato, distribuiu ministérios e cargos de segundo escalão a partidos do centrão, formando uma base heterogênea, às vezes contraditória, mas necessária para aprovar o novo arcabouço fiscal, o PAC e medidas emergenciais.
Agora, o presidente parece seguir o conselho de Maquiavel: “o governante prudente deve eliminar os perigos que o ajudaram a subir antes que eles o derrubem”. O gesto não é apenas administrativo — é simbólico. Ao demitir os que ele mesmo nomeou, Lula sinaliza que o tempo do refém acabou. O governo retoma o comando político, buscando um núcleo de fidelidade ideológica e eficiência técnica, mais próximo do espírito original do lulismo e menos dependente de barganhas parlamentares.
Agir como raposa e leão
Em O Príncipe, Maquiavel afirma que o governante deve agir como “a raposa e o leão”. A raposa, para evitar as armadilhas; o leão, para espantar os lobos. No caso brasileiro, a metáfora se encaixa com precisão. A raposa é o Lula negociador, que cede, ouve, promete e articula; o leão é o Lula estadista, que impõe autoridade e corta cabeças quando percebe traição ou chantagem.
As demissões recentes — especialmente as de políticos indicados por partidos que votaram contra o governo em pautas-chave — representam o momento do rugido. É a demonstração de força após a paciência diplomática. Como recomendava Maquiavel, “as ofensas devem ser feitas de uma só vez, para causarem menos dano; os benefícios, pouco a pouco, para serem melhor apreciados.”
O cálculo é simples. Perder alguns aliados insatisfeitos agora pode significar ganhar autonomia e respeito mais adiante. O medo político, em certas doses, tem efeito disciplinador.
Quando o príncipe reage aos mercenários
A mais recente ofensiva do governo confirma que o manual de Maquiavel segue vivo no Planalto. Como publicou nesta quarta-feira (15) o jornalista Henrique Rodrigues, na Fórum Revista, o Palácio decidiu cortar todos os cargos ligados ao ex-presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ou seja, centenas de postos que haviam sido entregues em troca de apoio político e que se converteram em instrumentos de chantagem parlamentar.
Segundo Rodrigues, o “alagoano estaria revoltado porque o governo reagiu” após uma série de sabotagens articuladas por Lira contra medidas do Executivo. A ordem agora é clara. Demitir todos os indicados ligados ao seu grupo, do alto escalão até os cargos intermediários.
O gesto simboliza o fim da “farra” das indicações e marca o momento em que Lula decide enfrentar diretamente um dos mais poderosos representantes do chamado centrão. O episódio é o exemplo perfeito da ruptura com os mercenários políticos.
Maquiavel teria aprovado. Após tolerar as manobras e chantagens enquanto consolidava o poder, o governante age com firmeza para recuperar o controle do Estado e impedir que os aliados de ocasião se tornem inimigos internos. É a velha lição do florentino posta em prática:
“Quem se apoia em forças alheias perde o comando de sua própria fortuna.”
Desmercenarizar o governo
Se a metáfora de Maquiavel for levada às últimas consequências, o que Lula faz é desmercenarizar o Estado. O governo que nasceu de uma frente ampla para derrotar o bolsonarismo começa a se reencontrar com seu próprio projeto. O ciclo das concessões dá lugar ao da consolidação.
Mas há riscos. Maquiavel também advertia que quem demite aliados deve agir rápido e de modo exemplar, pois o ressentimento dos “feridos” é o mais perigoso dos venenos políticos. A vingança, em Brasília, costuma se disfarçar de voto secreto. Ainda assim, o movimento indica um ponto de maturidade.
O presidente que, no início, foi acusado de ser refém do centrão, agora parece se libertar do cativeiro com um toque de realismo florentino. Afinal, a política, como ensinou Maquiavel, não é o reino da moral, mas da eficácia. E talvez Lula, que nunca foi ingênuo, tenha decidido — mais uma vez — governar com a sabedoria das raposas e a coragem dos leões.