Almandrade - “O acusado é proprietário de uma sentença, sem ser interrogado e sem as provas."
Eis a pena: 300 metros de distância entre pai e filho, impedidos de qualquer forma de comunicação.
Nada demais nestas fotos, não são de um fotógrafo profissional, tiradas por um amador, sem qualquer preocupação estética, apenas para registrar um momento, um encontro de fim de tarde de pai e filho depois do término das atividades escolares. Um acontecimento quase cotidiano que alegrava a criança. Essa estação de passagem entre a escola e a casa, é um lugar de trabalho, uma repartição pública, nada de especial. Mas, estas fotos registram algo extraordinário, uma despedida, impossível para uma criança de três anos, ter consciência. Mas as crianças têm pressentimentos: O que transmite o semblante da criança? O que diz o seu olhar? Um olhar triste, desconfiado, perdido, enigmático. Não são “os olhos que viram o imperador” nem é o olhar do rapaz que “aguarda o enforcamento”. Depois de Roland Barthes em a “Câmara Clara”, a fotografia é mais que uma reprodução da realidade. Ela explicita uma leitura e faz despertar sentimentos adormecidos dentro de nós.
A criança pensa com o olhar, com três anos o futuro é muito maior que o passado. Ela olha o futuro. Da Vinci, no quadro “A Santana”, uma, das mais belas e instigantes, composição plástica da história da arte: O menino Jesus de aproximadamente três anos, sai entre as pernas de Maria simbolizando o nascimento em direção a terra e abraça um cordeiro, como se estivesse olhando para o seu futuro, ele o cordeiro de Deus que veio ao mundo para salvar a humanidade. Depois de Da Vinci aprendemos a querer ver mais nas imagens. Um pormenor chama a atenção na foto, os lábios com um fragmento de biscoito, por um momento o garoto faz uma pausa, para de mastigar, com as mãos ocupadas cada uma com um biscoito, contempla o vazio, a câmara fotográfica ou o espectador. Para que essa pausa? Em que pensa? Eu vejo a solidão e a saudade. Pensei em Velásquez e “As Meninas”, quando ele para de pintar e olha para fora do quadro.
Na outra foto o sorriso desconcertado do pai, não consola a criança que olha para o chão, com as mãos no queixo e uma cara de choro e de desamparo. Será que ela imagina que vai separar-se do pai e tão cedo ou talvez nunca mais retorne a esse lugar de trabalho, um lugar sem nenhum atrativo para despertar a atenção infantil. Nessa sociedade da propriedade privada, nem as crianças escapam, deixam de ser filhos para ser coisas, animais de estimação de um dono e o outro é transformado em provedor econômico, garantido por lei que desconhece afetos e desejos. Questões aparte da imaginação do garoto. Esses mesmos olhos que da janela do apartamento um dia avistou o mar e gritou: “Papai, achei o mar”, o que viu desta vez para ficar assim tão aborrecido? Será o entardecer sombrio? Os poetas, as crianças e os loucos têm visões.
Na pintura de Pieter Brueghel, o maior observador em toda história da arte das brincadeiras infantis, mostra uma cidade como um grande playground, onde tudo nem sempre é fantasia e diversão. Num canto da tela, um lugar bem discreto, aparece a mascara da tragédia. No meio de tanta diversão, a triste realidade, a de que a humanidade segue o pior dos instintos. Não sabemos direito a mensagem de Brueghel como também não temos certeza do que diz o olhar desse garoto. Nos paraísos infantis nem tudo é tão inocente e maravilhoso, é preciso ser perspicaz e prestar atenção nos detalhes.
A foto é um registro histórico que fixa para sempre uma subjetividade, e sua interpretação reflete o ponto de vista e o desejo de quem olha. Ela tem muitas referências, cutuca o que está guardado no fundo da memória.