Fonte: Tribuna da Imprensa - O romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte, fotógrafo e poeta paulista Mário Raul de Moraes Andrade (1893-1945) fala logo na primeira estrofe de “Poemas da Amiga” sobre a tarde em que ele percebeu a lembrança de sua cidade, porque estava longe e somente viu na cidade um arranha céu cor-de-rosa.
Outrossim, Mário de Andrade comenta que deseja ser sepultado na cidade natal e, neste sentido, podemos concluir que a referida amiga é a cidade onde nasceu e não a que ele se encontra, embora não deseja que os seus amigos tenham conhecimento desse pedido.
Os versos de Mário solicitam que cada parte do seu corpo seja enterrada em um lugar da sua cidade e, isto, transmite-nos a ideia de que cada verso é como se fosse um poema diferente da sua amiga (da sua cidade natal), por isso o título “Poemas da Amiga” está no plural.
Mário, por Tarsila do Amaral
POEMAS DA AMIGA
Mário de Andrade
A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.